
Certa vez me apaixonei saindo do trabalho. Como era misterioso o meu amor. Como era sexy o meu amor. Como era moreno e alto o meu amor. Como era desconhecido o meu amor. Trabalhava em frente a uma praça bastante antiga, com aquelas luminárias do XIX, bancos trabalhados e alguns heróis de bronze branindo espadas em cima de seus cavalos. Venho de uma terra de "bravatas e heróis", travadas em nome da "República". E era nessa praça que via, todos os dias, o objeto de meu desejo. O trabalho era muito chato e passava boa parte do expediente pensando nos cinemas, bares e teatros que nós frequentávamos. Imaginava o nosso "namoro" tão vivo e intenso que as vezes ao sair e vê-lo sentado na praça, tinha ímpetos de ir lá acarinhar seu cabelo negro. Teve uma vez que devo ter passado umas 4 horas do plantão que tinha que fazer, às moscas, imaginando nosso namoro, noivado, casamento, filhos e nossas maravilhosas férias, sempre quentes e nada monótonas. Digo com propriedade, podemos viver uma vida em horas, com filhos e tudo mais. Quando achei que já estava ultrapassando os limites da sanidade, resolvi sair dos sonhos e passar mais tempo na tal praça do meu amor. Sentava sempre estratégicamente posicionada, nem tão perto que desse bandeira, nem tão longe que não desse pra ele me ver. O problema é que ele nunca me via. Na verdade ele não via nada, nunca olhava pros lados, sempre fixo em um dos seus grossos livros, sempre. Mesmo quando estava mais quente usava um casaco comprido, que dava a ele um ar vampiresco e misterioso, sempre. Tinha um nariz na proporção exata para seu rosto forte e moreno. A cor da pele era uma coisa a parte de tão linda, era de um moreno acobreado. Só o via do mesmo ângulo, curvado e meio à egípcia, sobre o tal livro grosso, sempre. Como era maravilhoso meu amor, e como eram lindos nossos filhos, como era bom nosso casamento, que homem perfeito. Resolvi adotar uma estratégia para que ele me notasse, passei em uma livraria e comprei o livro mais grosso que vi: O ser e o nada do Sartre. Como sempre, saí do trabalho e me posicionei perto do meu amor. Abri lentamente o livro, fazendo com que o título ficasse visível a ele, afinal meu amor era um amante das letras, eu tinha que mostrar que era uma mulher de bom gosto literário. Minhas pernas bambearam quando vi ele, pela primeira vez, erguer a cabeça em minha direção. Não acreditava, ELE me notara, via que tentava observar o que eu estava lendo, facilitei dando uma levantadinha no livro. De repente ele ergueu-se e caminhou em minha direção. Toda "nossa" vida passou como um flash por minha mente, na verdade "nossa" vida era um flash. Ainda de perna bamba, esperei ele se postar na minha frente, mais alto que um Tótem. O sol refletia em seu rosto e era difícil vê-lo com perfeição. Então aconteceu, ele perguntou: - gostas de Sartre? Nesse momento sua cabeça cobriu o sol e revelou uma boca negra: - ele não tinha dentes. Respondi de pronto: - e lá te interessa se gosto do Sartre?
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