O plano da memória é fodástico, ele se sobrepõem, se intercala, faz o movimento das marés..Numa dessas veio à tona, saindo do subsolo para a superfície, uma velha memória dos verdes 12 anos acontecida num rincão perdido entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai. Os pagos eram de uns parentes de minha mãe, família grande que morava nesse longínquo vilarejo perdido na geografia sulina. Os filhos eram muitos, a casa simplérrima- foi a 1ª vez que vi uma casa com terra de chão batido, tomei água de poço e usei a privada de madeira. Também foi a 1ª vez que vi o céu mais estrelado e lindo desse mundo. Não havia luz num raio duns 100 km, o céu parecia um planetário amplificado. Lembro do baile com vitrola à pilha e lampião de gás. Das moças que nunca haviam bebido refrigerante, das crianças separadas dos adultos dançantes por uma cortina e dele, o primo de minha mãe que estava sempre calado e parecia 'diferente'. Num final de tarde belíssimo - o pôr do sol é indecente nas coxilhas, raios alaranjados trespassavam as frestas do barracão de madeira e iluminavam, feito uma aparição, o primo que tinha nas mãos um exemplar do João Cabral de Mello Neto. Eu, mocinha da cidade que amava os livros desde que havia visto um, não entendi como naquela roça ele poderia estar na companhia de tão refinado escritor. Deleitei-me com aquela visão mais um pouco e quebrei o silêncio perguntando como ele havia conseguido aquele livro: - Troquei um pelego com um mascate do Chuí por alguns livros. O primo conversou sobre livros e os mundos no mundo em que eles nos lançam. Foi um fim de tarde inesquecível. Lamentei muito, anos depois já adulta, ao saber de sua morte. Foi buscar uma das ovelhas que havia fugido para outras terras e foi baleado pelas costas. Mais uma vítima da covardia dos latifundiários do sul, que ainda comandam seus pagos como coronéis..